Se o espírito do legislador da Constituição da República de Angola 2010 foi o de salvaguardar que o candidato a Presidente da República seja sempre um cidadão comprometido com o seu país e com a sua pátria, acima de outros interesses, não permitindo, por isso, que tenha dupla nacionalidade, por que razão é que os auxiliares do titular do Poder Executivo, que exercem o mesmo poder de quem não pôde ter dupla nacionalidade, o PR eleito, João Lourenço, podem ter? Não será esta uma das principais razões do descalabro político, económico, social e moral a todos os níveis em Angola? Faço aqui uma reflexão, com nomes de ministros e governadores, desta problemática.
De um tempo a esta parte, tenho reflectido profundamente sobre o estado de quase descalabro em que se encontra a vida dos angolanos devido à ineficácia de todos os serviços que o Estado coloca à sua disposição. É papel do Estado e, na verdade, razão da sua existência, pôr recursos sob gestão dos governantes com o objectivo de “resolver os problemas do povo”. Agostinho Neto, o primeiro Presidente de Angola, já dizia que “resolver os problemas do povo” é a principal razão da existência do partido que governa Angola desde 1975. “A prática não é o critério da verdade” para o MPLA. A “prática” dos “governantes do MPLA” mostra justamente o oposto. Por que será?
Tentei olhar para o problema a partir de uma perspectiva holística, em busca de uma justificação para o que se verifica, aduzi à equação factores como a colonização, a guerra civil e a consequente desestruturação do tecido social como causa impeditiva do nosso crescimento enquanto nação e como indivíduos, até que a realidade de países como Cabo Verde, com as mesmas circunstâncias históricas e menos recursos à disposição, veio desmentir-me e trazer-me de volta ao mundo da sã consciência, onde não se justifica o injustificável e não se defende o indefensável.
Continuei a indagar-me sobre o que realmente nos tem impedido de avançar e a razão de nada funcionar com normalidade em Angola – um país de azar?! –, onde para tudo se precisa de uma cunha, um jeitinho, um conhecido que faça as engrenagens funcionarem. Onde a oferta do sector da educação, para além de insuficiente, é de tão pouca qualidade que não nos permite sequer competirmos com os nossos “pequeninos” vizinhos em pé de igualdade, onde ainda existem salas de aulas apinhadas de crianças que quando terminam o primeiro ciclo do ensino primário ficam fora do sistema público de ensino e tudo quanto se ouve é a mesma paródia dos anos passados, apesar de PIIMs e puks que nunca desbloqueiam a penosa situação da denominada, apenas nas páginas da Constituição da República, absoluta prioridade do Estado, a criança.
Como perceber e aceitar que, em quatro décadas de governação feita por cabeças pensadoras, algumas das quais formadas nas mais conceituadas escolas do mundo e assessoradas por outros génios internacionalmente formados, os hospitais continuem com leitos insuficientes, que os que existem sejam ocupados por mais de um paciente, que não haja reagentes para um simples exame de paludismo e que sejam passadas receitas apenas com base nos sintomas, sem um diagnóstico sério, num país onde quase todas as doenças tropicais têm a mesma sintomatologia?
Diante disso, é mesmo realista esperar que um ser humano necessitado de atendimento médico e sem a alternativa de o conseguir numa instituição de saúde privada, reaja com jubilo aos hospitais a rebentarem pelas costuras, sem medicamentos, sem pessoal que dê resposta em tempo útil à demanda que faz os utentes morrerem às suas portas, antes mesmo de passarem pela avaliação dos médicos de plantão? Médicos estes que correm o risco de morrerem precocemente como os seus pacientes, por causa do número de horas dos bancos que lhes são atribuídos, sob pressão humanamente insuportável, condições de trabalho e de alimentação insalubres, não podendo deixar o posto para desanuviar as necessidades fisiológicas por horas, por causa da avalanche de pessoas que têm para atender (essa é uma realidade que constatei no Hospital Municipal da Samba, onde a médica cubana, a única de plantão naquele dia, não conseguia deixar a sala para fazer necessidades menores por causa do número de crianças graves que atendia nas urgências)!
A segurança pública é oque todos nós, por experiência própria, sabemos. Desprovida de capacidade para prevenir e combater o crime de maneira adequada, restando-lhe uma multidão de justificações e um sacudir a água do capote que tem levado a execução da justiça para as ruas, sujeitando-a ao julgamento popular e à aplicação de penas não previstas pelo direito.
O preço da cesta básica está num disparo permanente e sem recuo à vista, a produção interna a anos luz da autossuficiência, reina a insegurança alimentar e foi retirada do bolso dos angolanos a capacidade de sustentarem as necessidades mais básicas de um ser humano.
O desemprego reina em taxas exasperantes, a delinquência juvenil, a prostituição e a perda de valores prosperam, os corpos das filhas, irmãs e esposas dos angolanos tornaram-se moeda de troca para debelar a pobreza, são vendidos até por uma mínima refeição.
Filhos são concebidos e crescem sem qualquer orientação parental, sem referências de como ser um cidadão útil e exemplar para a sociedade, sem protecção da família, sem acolhimento e acompanhamento integral do Estado, deambulando pelas avenidas das cidades em busca de esmolas, muitas vezes instrumentalizados por adultos oportunistas e sem escrúpulos.
Em suma, atingimos um estado de “salve-se quem puder”!
Então, não é hora de colocarmos a arrogância sem proveito de lado e de atingirmos o zero (parafraseando o poeta maior), de pararmos para reflectirmos, diante dos milhões investidos, dos “cérebros” nomeados supostamente pela sua competência e alto perfil para executarem as medidas que deviam satisfazer os anseios dos angolanos, na razão de os serviços públicos não funcionarem e das políticas públicas teimarem em não produzir resultados? O que está a falhar?
A resposta é simples: a falta de comprometimento dos gestores públicos para com Angola e com os angolanos faz com que a sua governação seja um eterno tubo de ensaio, onde vão experimentando fórmulas cuja eficácia desconhecem e cujo resultado não tem qualquer implicação na sua vida e na do seu agregado. A forma como concebem e executam as políticas públicas não se repercute na sua esfera de interesses. Se derem errado, têm uma segunda pátria à sua espera, onde podem usufruir do que os angolanos pagam pela função que exercem sem qualquer consequência e onde as suas famílias já se encontram a estudar numa “escola normal”, a usufruir de “serviços normais” de saúde, “acesso normal” à habitação e a tudo, tudo, mas tudo mesmo, melhor que a maior parte dos angolanos, porque eles têm uma “segunda pátria”.
A dupla nacionalidade dos governantes angolanos é o busílis da situação precária de vida dos angolanos. Não se verifica o sentimento de pertença no exercício das suas funções. Quando o dinheiro é nosso e nos custa ganhar, dói desperdiçar um kwanza sequer, não fazemos planos perdulários e que resultem em prejuízo para os membros da nossa casa, nem fazemos de contas que trabalhamos quando as nossas acções não resolvem efectivamente os problemas dos nossos.
A única explicação para o espírito de “deixa andar” que se verifica na actuação dos auxiliares do Titular do Poder Executivo, no que se refere à satisfação das necessidades dos angolanos, está no facto de quem as satisfaz não terem Angola o seu único projecto de vida.
Eles estão autorizados a falhar. Se a experiência angolana der errado, pouco ou nada vai mudar nas suas vidas, apenas o seu domicílio, visto que têm outras nacionalidades para os acolher, onde já residem as suas famílias e onde se encontra o seu património.
Assim, não é expectável que um sistema de saúde proporcionado por governantes que não o usam funcione. De igual modo, que um sistema de educação oferecido por quem prefere o ensino privado ou estrangeiro para os seus tenha qualidade. É tão simples quanto isso e nem é preciso um grau de PhD em Harvard para se chegar a essa conclusão. Se fosse obrigatório que os governantes usassem os hospitais públicos do país e que os seus filhos estudassem nas escolas públicas nacionais, provavelmente o quadro desses sectores seria diferente, pois eles sentiriam na carne o que a maior parte dos angolanos, seus governados, vivem.
Porém, os auxiliares do Presidente da República João Lourenço, com dupla nacionalidade, estão blindados por outras nacionalidades que possuem e inibi-los de continuar a precarizar os serviços públicos por restringir o seu acesso às alternativas de que dispõem enquanto cidadãos de outros países seria violar os direitos que têm ao abrigo de tais nacionalidades.
Isso desperta-nos para um perigo real, para uma questão de soberania que é a ratio da proibição constitucionalmente consagrada da detenção de dupla nacionalidade pelos candidatos ao cargo de Presidente da República de Angola.
Sobre os candidatos ao cargo de Presidente da República de Angola impende, por força da alínea a) do n.º 2 do artigo 110.º da CRA, como causa de inelegibilidade, a proibição da detenção, pelo candidato, de nacionalidade adquirida (entenda-se, estrangeira) para além da originária angolana. Conclui-se que o legislador constituinte entende que a dupla nacionalidade por parte de um candidato ao cargo de Presidente da República periga, em caso de vitória, a Independência Nacional se sobrevierem conflitos de interesses ou quando exista a necessidade de defesa da soberania nacional face à soberania estrangeira. Essa limitação é reproduzida na Lei n.º22/10,de 3 de Dezembro, Lei dos Partidos Políticos, que proíbe os seus órgãos directivos de possuírem nacionalidades estrangeiras.
Ora, partindo do pressuposto de que ministros, secretários de estado, governadores e vice-governadores exercem, em menor escala, os poderes do Presidente da República enquanto titular do Poder Executivo, a eles delegados para a prossecução do interesse público, salvaguarda da integridade territorial e união nacional, pedras sobre as quais se encontra edificada a soberania nacional, não é uma asneira começar-se a considerar a possibilidade de extensão, qual requisito de nomeação, da proibição que impende sobre o dono dos poderes que exercem, de possuir dupla nacionalidade.
Quando a longa manus do TPE perceber que deixou de ter escapatória territorial e geográfica para o seu mau desempenho, quando entender que se o barco afundar, afunda junto com ele ou vive com o estatuto de estrangeiro em outras latitudes, deixará de ensaiar e de experimentar para realmente dedicar-se ao que nos interessa a todos: “resolver os problemas do povo”.
Para grandes males são necessários dolorosos remédios! O Presidente da República precisa de deixar de nomear pessoas com dupla nacionalidade porque a ele também foi exigido isso para ser candidato e ter acesso aos recursos de Angola. Se o titular não pode ter dupla nacionalidade, por que o auxiliar pode exercer o poder do titular, tendo dupla nacionalidade, se tem o mesmo poder (delegado)? Faz algum sentido? A interpretação aqui devia ser extensiva. O legislador constituinte acautelou isso. Mas não se cumpre na prática porque não se percebeu o sentido e os perigos de se ter dupla nacionalidade e, ao mesmo tempo, mandar nos destinos de Angola.
O Presidente da República João Lourenço, se quiser ter sucesso, tem de nomear angolanos comprometidos com o país e com a pátria, em primeiro lugar, acima mesmo dos interesses do MPLA, seu partido. Deve exigir que os seus auxiliares vivam cá em Angola, cuidem da saúde cá, tenham educação cá, sejam tratados nos nossos hospitais, muitos até inaugurados pelo Presidente da República, e que a sua família esteja cá a usufruir dos serviços que eles próprios põem à disposição do povo angolano, isso incluindo o próprio Presidente da República e a sua família.
O TPE deve exigir que os seus auxiliares ponham os seus filhos a estudar nas nossas escolas públicas nacionais, que vivam “os problemas do povo”. Só resolve os problemas do povo quem efectivamente os conhece e também os vive na pele. A falta de comprometimento dos nossos governantes, para com o país, está identificada. É preciso haver coragem para mudar o quadro. É preciso estabelecer perfis – incluindo a proibição de dupla nacionalidade – para cidadãos que pretendam exercer funções sob responsabilidade do titular do Poder Executivo.
Quem representa o Presidente da República, dentro ou fora de Angola, fá-lo em todos os níveis. Tem as mesmas responsabilidades do Presidente da República, porque lhe foi delegado um poder proveniente do titular do Poder Executivo. Como podem ter dupla nacionalidade se até têm de ir representar Angola e o Chefe de Estado num país onde eles também são filhos daquela pátria? Num país que até pode ser da sua preferência? Onde está o comprometimento com Angola? E quem garante que vão guardar os segredos de Estado quando um dia já não forem os escolhidos ou quando o próprio Presidente da República João Lourenço deixar o Poder Executivo?
Pode haver excepções. Mas quem são as excepções? Quem estudou o perfil de cada um para poder representar condignamente o titular do Poder Executivo?
É urgente que se mude este quadro. Daí a necessidade de se estar dentro de um perfil ligado ao espírito do legislador da Constituição da República de Angola. A proibição de dupla nacionalidade por parte de quem venha a ser Presidente da República de Angola tem uma lógica. Não está na Constituição para inglês ver. Tem uma essência. E a essência é profunda. Quem exerce o poder do Presidente da República não pode, igualmente, ter dupla nacionalidade. Temos de acabar com isso.
Quem sabe se não é esta a via que nos vai transformar de um projecto de país, com cidadãos negligenciados por quem os governa, para um país onde os governantes, imbuídos de sentido de Estado e não com o espírito dividido e alternativo para o caso de isso dar errado, produzam verdadeira mudança nas suas acções e decisões diárias para melhorar efectivamente a vida dos angolanos, “resolvendo os problemas do povo”, de Cabinda ao Cunene?
O assunto continua…
Carlos Alberto, Portal A Denúncia