Faz ‘coaching’ a título pessoal a uma ministra, presta apoio a escolhas para o gabinete de outra, vai em visitas aos bastidores do poder “para ir ver amigos”. O Governo e Cunha Vaz, uma das principais figuras no mercado das agências de comunicação, estão numa relação – informal.
Em janeiro de 2008 os jornais não largavam a “novela venezuelana”, como lhe chamou o então líder do PSD, Luís Filipe Menezes: a contratação da agência de António Cunha Vaz para tratar da comunicação do grupo parlamentar do PSD. A Cunha Vaz & Associados (CV&A), criada cinco anos antes, implantara-se no futebol, nos negócios e na política e a sua chegada ao Parlamento gerou escrutínio mediático. A notícia saíra de uma reunião privada com sete pessoas, onde estavam Santana Lopes e Cunha Vaz. A opinião da bancada do PSD sobre a polémica, lia-se no Público, era resumida pelo deputado Campos Ferreira: “Algo vai mal quando uma agência de comunicação é ela própria notícia.” Em março os media ainda perguntavam que relação havia com a CV&A, cujos funcionários eram vistos na sede do partido, algo a que Cunha Vaz respondia com “não temos prestado serviços cobráveis” e que o PSD não esclarecia. Quase 17 anos depois, a história repete-se entre o PSD, Cunha Vaz – e a informalidade.
António Cunha Vaz, 63 anos, trabalha nos bastidores para influenciar as notícias a favor dos seus clientes, e para os treinar a lidar com os media, mas continua ele mesmo a ser notícia. O Observador divulgou este mês que a equipa de coordenação política de Luís Montenegro pediu a Cunha Vaz apoio para melhorar a comunicação e o funcionamento da equipa da ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, tida no topo do Governo como sendo inábil em público. O apoio terá também passado por sugestões de nomes e pela opinião sobre pessoas a escolher para o gabinete de Blasco. Com ou sem influência direta de Cunha Vaz, a assessora de imprensa do gabinete saiu no final de outubro – e até à semana passada não tinha substituto oficial.
Na Saúde, a ministra Ana Paula Martins teve formação sobre como lidar com os media, administrada pela Cunha Vaz – fonte do Ministério da Saúde indica à SÁBADO que esta foi feito “a título pessoal” e que o ministério não tem contratos com a CV&A. Na Saúde, só a Direção Executiva do SNS tem um contrato com a CV&A, para a assessoria de imprensa, feita por uma funcionária da CV&A, para ali destacada – é uma de quatro pessoas da agência requisitadas para os gabinetes ministeriais, confirma Cunha Vaz à SÁBADO.
O trabalho tem sido maioritariamente informal, facto que o empresário da comunicação – que na conversa com a SÁBADO começou por negar o seu papel e acabou por reconhecer que foi chamado a dar “uma ajuda” e depois a referir o contrato com o SNS – explica com a imagem de um médico que não se faz pagar quando atende os amigos. “Estarei sempre ao lado daquelas pessoas que considero meus amigos”, diz. “Os casos das senhoras ministras que menciona são de pessoas que conheço há muitos anos do meu tempo na União Europeia e que considero muito [Margarida Blasco] ou que conheço há menos tempo [Ana Paula Martins], mas cujo trabalho respeito”, afirma.
A colaboração de Cunha Vaz com o governo surge cinzenta ainda noutras áreas. Diogo Belford Henriques, administrador da Cunha Vaz, tem sido visto com alguma frequência, apurou a SÁBADO, na própria Presidência do Conselho de Ministros, sem que se lhe conheça contrato oficial com o executivo – criando, inclusive, mal-estar em alguns setores, até pelo percurso muito próximo de Paulo Portas no passado. “Passeiam-se pela sede do governo como se fossem a cavalaria”, regista quem frequenta o edifício. Cunha Vaz responde que Belford “tem lá amigos que fez na política” e que vai “visitar”. Ele próprio acompanha-o porque também tem lá amigos, indica.
A aproximação a Luís Montenegro não é de agora: vem da relação com Hugo Soares, hoje líder parlamentar do PSD, de quem ficou amigo “há 14 ou 15 anos” numa campanha para as autárquicas. A informalidade também não é de agora. Quando um dos jornalistas que assina esta peça enviou perguntas em 2017 para o secretário de Estado João Vasconcelos (que morreu em 2019), do governo PS, quem respondeu primeiro por telefone foi Cunha Vaz, que não trabalhava oficialmente com o governante. “O João era um grande amigo e quando foi a secretário de Estado e precisou de ajuda eu ajudei-o e ele pagou-me com o respeito e a amizade”, diz Cunha Vaz. “Há outros que podiam morrer mais cedo”, junta. A agressividade, assumida, é pouco habitual no meio.
O caráter informal levanta a questão sobre por que razão alguém trabalha de graça para a política, uma pergunta feita também há 17 anos. “O que abre mais a porta a coisas menos boas? É ser amigo e respeitar as pessoas sem lhes pedir cunhas para nada ou ganhar pilhas de contratos públicos?”, responde Cunha Vaz em tom de pergunta, numa farpa à concorrência, com quem tem uma relação hostil (em particular com Luís Paixão Martins, que não quis falar para este artigo).
Em 2008, Cunha Vaz admitia ao Público que trabalhava com o PSD de Menezes por outros motivos. “Apesar de ter uma boa carteira de clientes, interessava-me também poder aceder a outro tipo de clientes, mais próximos do Estado”, disse, deixando no ar que não conseguia tê-los porque a concorrência era favorecida pelo PS.
Por outro lado, é verdade que transforma muitas vezes a proximidade profissional em pessoal. Quando Pedro Calado, autarca do Funchal com quem teve vários ajustes diretos, ficou detido três semanas em Lisboa, foi ele levar-lhe itens pessoais urgentes à cadeia e, hoje, Calado trabalha como consultor no edifício Infante, na sala que a Cunha Vaz usou para trabalhar nos contratos com o governo regional da Madeira.
BCP, Carrilho e negócios
A carreira de um dos mais reconhecidos spin doctors em Portugal não começou no BCP – depois do curso de Direito em Lisboa esteve vários anos na Comissão Europeia e foi assessor do socialista José Lamego nos Negócios Estrangeiros –, mas foi a partir do BCP que cresceu. Os pais de Cunha Vaz emigraram de Angola, onde ele nasceu, para a Madeira, onde cresceu e conheceu, entre outros, Jardim Gonçalves. Foi um dos irmãos Jardim, padre, que o casou.
No BCP liderado por Jardim Gonçalves, para onde entrou em 1996, a vida de quem tratava da comunicação não era fácil, recorda o ex-administrador Filipe Pinhal. “Um dia, olhando para a gravata dele, disseram-lhe que só Jardim podia usar gravatas Hermès”, conta, à laia de caricatura. Ao fim de quatro anos Cunha Vaz fartou-se da subalternização e, depois de sair, lançou-se por conta própria.
De pequena estatura, gestos nervosos, raciocínio rápido e aptidão para o confronto, Cunha Vaz era – e continua a ser – uma pilha de energia e de iniciativa, que rapidamente singrou no mundo da comunicação, acumulando clientes entre o futebol (fez a comunicação do Euro 2004, trabalhou com Luís Filipe Vieira e o Benfica), os negócios (da Caixa Geral de Depósitos à Sonaecom, que assessorou na OPA falhada à PT) e a política, em que se estreou a fazer a campanha de Carmona Rodrigues à câmara de Lisboa, em 2005.
A espaços trabalhou para clientes com interesses opostos, como quando colaborou com Menezes no PSD, crítico da partidarização do BCP pelo PS, e foi crucial para Carlos Santos Ferreira, o gestor da Caixa que encabeçou a mudança de poder no banco. O operacional da comunicação, tal como os seus clientes, viveu sempre bem com isso. “Enquanto assessor de comunicação de Carlos Santos Ferreira, presidente da Caixa em 2007, António Cunha Vaz foi um elemento crucial na estratégia de assalto ao BCP”, aponta Filipe Pinhal, que refere a sua “eficácia” a vender a narrativa aos media de que o Banco de Portugal estava correto em impor Ferreira e Armando Vara no BCP.
O caso do BCP tem algo em comum com outros em que Cunha Vaz teve sucesso. “Ele é melhor quando está com alguém que precisa de entrar em algum lado”, diz uma fonte do setor, que lhe critica os métodos pouco ortodoxos e, ao mesmo tempo, lhe elogia a intensidade e o “vestir a camisola”.
O sucesso com Carmona Rodrigues, um desses casos, pô-lo de novo na ribalta por maus motivos quando Manuel Maria Carrilho, o candidato derrotado, escreveu num livro que Cunha Vaz fora ter com ele antes de ir a Carmona, para vender serviços que incluíam financiamento ilegal da campanha e compra de apoio mediático. Cunha Vaz processou o autor, mas perdeu.
Carrilho diz que foi decisivo haver testemunhos como o do jornalista Miguel Szymanski – este confirma à SÁBADO que, apesar de não conhecer Carrilho, se ofereceu para testemunhar que ouvira Cunha Vaz dizer (na associação Oikos, onde ambos tiveram funções) a frase “tenho muitos jornalistas na minha payroll”. Em tribunal, Cunha Vaz negou a acusação.
Em 2008, no quinto aniversário da agência, o empresário da comunicação convidou 700 pessoas para ouvirem o ex-Presidente Bill Clinton, uma das figuras de proa que trouxe a Portugal para promover a sua agência – algumas pagas pela CV&A, outras em parceria. No mesmo ano, abriu o negócio em Angola, que nos anos melhores – como aqueles em que trabalhou na organização da viagem do Papa Bento XVI ou na comunicação da Taça das Nações Africanas – passou a valer 40% da faturação (e 20% nos restantes). Algumas faturas por pagar em Angola foram parte dos problemas por que a CV&A passou poucos anos mais tarde, na crise, e que levaram Cunha Vaz, entre outras medidas, a vender peças da sua coleção de arte para capitalizar o negócio.
Mais do que na política, o nome de Cunha Vaz foi surgindo nos media ao longo dos anos seguintes ao lado de grandes empresas, da Sonaecom à Amorim, passando pela Altice (na compra da PT) ou a Ongoing – sobre esta última, que faliu em 2016 deixando mais de 1.200 milhões de euros em dívidas, Cunha Vaz dirá que se arrependeu de a ter representado ao longo de anos (em 2011 surge nos media a defender a imagem do ex-espião Jorge Silva Carvalho, contratado pela Ongoing e acusado de fugas de informação confidencial para uso do grupo).
“Os gajos não vão perceber nada”
Além de tentar influenciar a mensagem nos media – um contrato de 2012 com a Santa Casa, por exemplo, explica que o objetivo era “elevar os níveis de influência junto de um conjunto de jornalistas estratégicos” –, a CV&A faz media training a políticos e empresários.
Um exemplo que saltou para os jornais foi o de Rui Fontes, administrador do Novo Banco, preparado antes de ir à Comissão de Inquérito à gestão daquele banco – a CV&A pôs formadores a assistir às audições anteriores e a sentarem-se à frente de Fontes, cada um simulando um determinado partido, com perguntas específicas. A ideia era o gestor apresentar-se com um discurso “monocórdico e chato, porque os gajos não vão perceber nada do que ele vai dizer”, disse ao telefone o presidente do Novo Banco, António Ramalho, apanhado numa escuta no contexto da Operação Cartão Vermelho.
A agência que faturou cerca de 10 milhões de euros em 2022 – o dobro da média dos dois anos anteriores, segundo a base de dados Informa DB – foi vendida em 2023 ao grupo francês Havas, um dos maiores do mundo na área da publicidade e comunicação. Cunha Vaz vendeu a pensar na sua reforma – mantém para já as funções de gestão – tendo ficado do seu lado com a operação em África (em Angola tem a conta da Casa Civil de João Lourenço). Para os franceses transitaram os 34 funcionários e 45 clientes, que incluem várias instituições financeiras (Fosun, Fidelidade, Novo Banco, GamaLife, WiZink), da construção (Mota-Engil e Tecnovia), entre outras.
Só um cliente da CV&A é da política: o PSD. Entre os laranjas, tal como em 2008, há quem pense que a vaidade de Cunha Vaz o levou a pôr cá fora que estava a apoiar as duas ministras, expondo o próprio Governo. “Do que conheço dele, e conheço, não é o estilo dele ser discreto”, diz um político do partido. Outra fonte, ligada ao PSD na Madeira, conta que mal foi fechado o acordo para a CV&A fazer a campanha eleitoral das regionais em 2019, a notícia saiu no DN da Madeira “e depois foi reproduzido na imprensa nacional como ‘Cunha Vaz volta à política’”. Quando trabalhou com Menezes, deu depois uma entrevista ao Público em que surgia quase como o “criador” da candidatura vitoriosa deste à liderança do PSD.
António Cunha Vaz, que em 2008 negou ter sido a fonte da notícia, nega também agora no caso do governo da AD, dizendo que a exposição o prejudica e que nunca contactou o jornalista que escreveu a peça. “Se quiser pôr cá fora o que faço, tenho coisas mais importantes do que isso”, responde à SÁBADO.
Observador