Ninguém duvide de que sempre estivemos na linha da frente no combate à corrupção, bem como na investigação e divulgação dos eventuais actos ilícitos de Isabel dos Santos. No entanto, ninguém duvide, também, de que a nossa luta é pela justiça. Justiça para todos. E é sobre justiça e Isabel dos Santos que versa este texto.
Foi em Dezembro de 2019 que se iniciou a saga judicial contra Isabel dos Santos num tribunal de Luanda. O acto inicial foi um congelamento de bens da filha primogénita de José Eduardo dos Santos por um tribunal cível, a que se seguiu, em Janeiro de 2020, a divulgação dos Luanda Leaks e várias subsequentes apreensões e congelamentos de activos de Isabel dos Santos, quer em Angola, quer em Portugal (deixamos de fora o caso dos Países Baixos, cujos desenvolvimentos diferem daqueles que ocorreram nos dois países lusófonos).
O certo é que, passado pouco tempo, o orgulhoso império económico de Isabel dos Santos estava reduzido a escombros e ela própria exilada no Dubai.
A actuação concertada dos Estados angolanos e português retirou-lhe as principais empresas e desfez o seu grupo económico. Entre nacionalizações e congelamentos (utilizamos um termo não jurídico propositadamente, para englobar uma série de figuras jurídicas, como o arresto, a apreensão, etc.), Isabel dos Santos ficou sem o controlo da Unitel, do Candando, dos seus bancos em Angola, da sua participação na Galp e na NOS, além de ter perdido a Efacec, para referir apenas resumidamente os activos e bens que foram subtraídos ao seu controlo directo.
Contudo, há uma perplexidade que se gera com tudo isto. Até ao momento, Isabel dos Santos não foi acusada criminalmente, nem em Angola, nem em Portugal. Passaram quase cinco anos, foi-lhe retirado o império, mas ainda não foi dada qualquer razão fundamentada judicialmente para isso.
E não se diga que é um problema político especificamente angolano, pois em Portugal aconteceu o mesmo. É um problema de justiça e que evidencia um risco sério que devemos temer: como é que uma pessoa, de repente, por acção da força dos Estados, pode perder os seus activos e bens sem que haja um processo judicial que a condene?
Com esta dúvida, não estamos a defender a inocência de Isabel dos Santos, nem sequer a invocar a presunção de inocência, que obviamente parece ter sido afastada desta situação, mas a chamar a atenção para a necessidade de ter uma justiça a funcionar e a defender os direitos fundamentais de todos.
O que Isabel dos Santos merecia era uma acusação, um julgamento público e uma sentença, tudo realizado em tempo útil. Então, ficaria sem o império ou com o império, de acordo com o resultado judicial. Aquilo a que até agora assistimos foi a uma apropriação sem condenação. Tal é possível tecnicamente, mas não é justo.
A curto prazo, os procedimentos que foram aplicados a Isabel dos Santos podem parecer uma vitória da luta contra a corrupção; a médio prazo, porém, trata-se da abertura de um caminho muito perigoso.
Façamos um exercício de especulação futurista. Actualmente, algumas empresas são criticadas na opinião pública por deterem as posições dominantes e quiçá ilegais que Isabel dos Santos detinha no passado. Ora, nada impede que um dia aconteça aos seus donos o mesmo que aconteceu a Isabel dos Santos: ficarem sem as empresas, sem um julgamento adequado. Por outro lado, anuncia-se a venda de algumas participações empresariais que no passado pertenciam a Isabel dos Santos. Nada obsta a que um dia tudo venha a ser revertido, com prejuízo para os actuais donos.
O argumento deste texto é muito simples. A bem do Estado de Direito, não tem sentido terem-se retirado as empresas a Isabel dos Santos sem que para isso tenha havido uma acusação criminal. De um modo geral, e salvo casos excepcionais, uma coisa deve andar ligada à outra.
O Estado angolano e o Estado português têm o dever de apresentar as provas de que dispõem contra Isabel dos Santos e levá-la a tribunal. Não o fazendo, Isabel começa a ser absolvida pelo tribunal da opinião pública, depois de ter sido manifestamente condenada pelo mesmo tribunal popular. Não queremos julgamentos populares, nem para condenar, nem para absolver. Se existe um sistema de justiça, é para fazer justiça e não permitir o domínio das ondas da opinião pública.
Aquilo a que se assiste hoje em Angola é que, por via da incapacidade da Procuradoria-Geral da República para produzir uma única acusação criminal contra Isabel dos Santos, esta se está a tornar uma mártir. Pouco faltará para se transformar em heroína. E depois a pressão para tudo inverter será incontornável.
Já assistimos a demasiados processos históricos para não entender que o momento não passa disso mesmo, de um momento, e que o momento seguinte pode ser diferente, até mesmo contrário. É este o risco que se corre com a inexistência de acção criminal contra Isabel dos Santos. Ou talvez já estejamos mesmo perante um facto consumado e um dia Isabel dos Santos regresse a Angola, injustamente considerada uma heroína.