O golpe de Estado (ou a revolução) é simultaneamente o mais antilegal e o mais legal dos actos políticos.
É o mais antilegal porque pretende derrubar uma ordem jurídica vigente, mas é o mais legal porque procura instituir uma nova ordem jurídica com uma renovada legitimidade. A fronteira entre a legalidade e a ilegalidade de um golpe é o seu sucesso ou fracasso. Se tem sucesso, é legal; se fracassa é ilegal.
É, por isso, que a existência de uma Constituição não garante a impossibilidade de um golpe de Estado, nem os apelos ao respeito da Constituição afastam ou inibem o golpe de Estado. Este constitui precisamente uma recusa da ordem constitucional vigente. Nessa medida, há que não confundir o Direito e a realidade. O Direito não determina a realidade, apenas a ajuda a conformar-se, a arrumar-se; no final, a realidade sobrepõe-se sempre ao Direito, e é este que tem de se adaptar.
Vem isto a propósito da recente onda de golpes de Estado que está a varrer o continente africano de modo quase surpreendente.
A posição angolana tem sido constitucional, isto é, condenar todas as alterações não permitidas pela Constituição dos vários países. Contudo, pelos motivos que acabamos de ver, esta posição acaba por não ser realista.
Ao contrário do que se pensa, os golpes nos vários países têm sentidos e causas diferentes. Se, nalguns casos, há o que poderemos chamar “mão russa” e antifrancesa (Mali, Burkina-Faso), noutros, há um certo pan-africanismo e cansaço com abusos de poder (Guiné-Conacri). Noutros casos ainda, há uma certa indefinição: no Níger, por exemplo, o golpe contou com uma precipitação do Ocidente, e o recente golpe no Gabão parece ser um reordenamento palaciano, contando também com algum apoio ou complacência do Ocidente.
Possivelmente, haverá mais diferenças do que similitudes entre cada um dos golpes, embora na génese de todos estejam a pobreza e o descontentamento da generalidade da população, hoje mais bem informada e consciente dos seus direitos.
Portanto, não basta invocar o respeito pela Constituição, quando o objectivo do golpe é desrespeitar a Constituição. Nesse sentido, a posição oficial angolana é demasiado formalista e não leva ao encontro de soluções para África.
A questão essencial é que uma Constituição só merece ser defendida se assegura três pontos básicos: a boa governação, uma boa relação entre Estado e cidadãos, e a possibilidade de ideias e forças diferentes ocuparem o poder político de forma pacífica.
Ora, este seria precisamente o ponto a adoptar pela política externa angolana. Em vez da defesa de um constitucionalismo formal que se torna vazio e sem impacto continental, dever-se-ia procurar submeter as constituições a estes três testes: i) garantem a boa governação? ii) equilibram as relações entre Estado e cidadão? iii) permitem assumir o poder por meios pacíficos? Em vez do formalismo, teríamos a defesa do constitucionalismo material, o que permitiria que Angola se arvorasse em defensora real dos valores constitucionais africanos, não se limitando a ser uma mera força de reacção.
Isto leva-nos à situação interna em Angola, que parece ter-se polarizado com o golpe de Estado no Gabão. A realidade angolana é que o último ano foi manifestamente de balbúrdia política. Não se pode dizer que a ameaça de golpe de Estado paire sobre Angola, mas pode dizer-se que há uma constante instabilidade latente.
De um lado, o principal partido da oposição tenta ocupar o espaço mediático, com iniciativas que demonstram o seu desconforto por não ter sido vencedor das eleições de Agosto de 2022. Quase parece querer criar uma realidade virtual paralela em que é governo. Recentemente, anunciou a reunião de um Conselho de Ministros… sombra.
Do outro lado, o partido do governo não parece ter feito nenhuma reflexão sobre os resultados sofríveis dessas eleições, hesitando entre apresentar obra assente em infra-estruturas (aeroporto de Luanda, barragens) e precipitar-se a discutir o eventual sucessor de João Lourenço em 2027, quando este mal começou o segundo mandato.
A verdade é que o espectro político angolano está cristalizado e necessita de um novo espírito. Um espírito que centre a política na pessoa angolana e renove a actividade partidária.
Começámos por pensar que esse novo espírito se poderia traduzir numa nova Constituição, ideia que aparentemente a Igreja Católica partilha. Hoje, talvez se pense mais além e, antes de uma nova Constituição, seja necessária a criação efectiva de instituições funcionais que garantam a política centrada na pessoa. E essas instituições são simples: escolas, mercados, tribunais e partidos políticos.
A renovação do espírito da política em Angola deveria começar por uma atenção redobrada à escola primária (tema para uma futura intervenção de fundo por parte da direcção deste portal, pelo que não o desenvolveremos aqui).
Além das escolas, dever-se-ia promover a criação efectiva de mercados livres e competitivos em Angola, onde qualquer pessoa possa ser empresária, abrir uma empresa, vender os seus produtos no território nacional e concorrer a contratos públicos. Tudo isto sem ligações, influências ou burocracias.
Também ao nível dos tribunais têm de ser afastadas as nuvens predominantes de suspeição, que são um dos maiores entraves ao investimento externo. Já se perdeu demasiado tempo com as lutas no poder judicial e já se deixou o sistema demasiado tempo debaixo de fogo.
Finalmente, ao nível dos partidos políticos, é fundamental refrescar pessoas e ideias.
Naquilo que diz respeito ao MPLA, o partido de governo dá todos os sinais de ter perdido o seu sentido histórico, pelo que beneficiaria de uma refundação com novas vestes, novas pessoas e novas ideias.
A verdade é que o MPLA se defronta com um problema para o qual não tem solução. É um problema de cariz psicossocial: 50 anos é muito tempo, e o tempo cria uma exaustão no inconsciente colectivo que dificilmente será ultrapassável. As pessoas precisam de ver novas cores, novas caras, novos sorrisos de esperança. É por tudo isto que o apego a fórmulas constitucionais e legais não resolve problemas de fundo. Em qualquer parte do mundo, uma Constituição é tanto mais frágil quanto não corresponder ao consenso da população. Veja-se que mesmo a mais antiga Constituição escrita da modernidade (a dos Estados Unidos da América) baqueou perante tentativa ilegítima de tomada de poder por Donald Trump, em 6 de Janeiro de 2021.
Por Rui Verde, Maka Angola