O major das Forças Armadas Angolanas (FAA) Pedro Lussati revelou, numa denúncia aos deputados à Assembleia Nacional, a que o !STO É NOTÍCIA teve acesso, que tudo aquilo que foi exibido na peça televisiva ‘Operação Caranguejo’, a respeito da sua alegada detenção, não passou de uma “farsa teatral”, urdida pelo general Fernando Garcia Miala, que instrumentalizou magistrados do Ministério Público (MP), juízes, procuradores, inclusive o advogado David Mendes.
No documento enviado à presidente da Assembleia Nacional, Carolina Cerqueira, e aos grupos parlamentares do MPLA, da UNITA e Misto, o major das FAA revela uma série de acontecimentos, que tiveram lugar antes do sequestro que diz ter sido alvo e logo a seguir, quando foi conduzido, por 44 dias, a um cárcere privado, sob tortura, coacção e interrogatórios incessantes, alguns dos quais conduzidos pelo próprio general Fernando Garcia Miala.
Na denúncia aos parlamentares angolanos, Pedro Lussati conta que, após ser sequestrado, no dia 13 de Maio de 2021, à porta do condomínio Imoluanda, onde reside, em Talatona, ficou sob cárcere privado até ao dia 27 de Junho de 2021.
Mandados de detenção e prisão preventiva extemporâneos
O conhecido ‘cabecilha’ do mega-esquema de corrupção da antiga Casa de Segurança do Presidente da República acusa, no expediente enviado ao Parlamento, Fernando Miala de ter forjado a produção de documentos fraudulentos, designadamente o ‘mandado de detenção’, o ‘despacho’ que ordenou a sua prisão preventiva e o ‘mandado de buscas e apreensões’, todos eles, segundo afirmou, “eivados de vícios insanáveis, violadores da Constituição e da lei”.
Lussati revela ainda que o seu mandado de detenção foi emitido a 24 de Maio de 2021 e o despacho de prisão preventiva a 27 de Maio de 2021, numa altura em que já se encontrava desaparecido, incomunicável e sob cárcere privado, na sequência do alegado sequestro de que foi alvo aos treze dias daquele mesmo mês.
O papel do magistrado Matos de Macedo Dias
A 24 de Maio de 2021, Pedro Lussati descreve que apareceu no cárcere privado um oficial de justiça, que afirmou chamar-se António Miranda, da Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), levando consigo um mandado de detenção assinado pelo magistrado Matos de Macedo Dias, para que ele o assinasse, 11 dias depois de se ter dado o sequestro.
Ainda naquele mês, mas no dia 27, Lussati narra que “encapuzado e, sob coacção física e moral grave”, “foi forçado a assinar a notificação de recepção de um ‘despacho’ que ordena a sua prisão preventiva”, que havia sido assinado pelo mesmo magistrado do Ministério Público, Matos de Macedo Dias.
Matos de Macedo Dias, segundo nota explicativa enviado aos deputados, é o mesmo que esteve ou está ligado ao Processo n.º 12/2020, da DNIAP, que investiga os crimes de corrupção, peculato, participação em negócio, branqueamento de capitais, falsificação e burla, relacionados com os negócios que o Estado angolano teve com a empresa China International Fund Limitada, do cidadão chinês Sam Pa e que tinha como accionistas os generais Leopoldino do Nascimento, Kopelipa e o ex-Vice-Presidente da República Manuel Domingos Vicente.
“Assim, ao instrumentalizar, subverter ou associar-se a magistrados do Ministério Público, juízes e oficiais de justiça para a prática de actos criminosos — sequestro, extorsão, fraude na forma de falsificação de documentos, prevaricação e denúncia caluniosa — o ministro FGM [Fernando Garcia Miala] abusa dos poderes que lhe foram conferidos e desvia-se da finalidade dos serviços que deve dirigir no âmbito da produção de informação e análises, bem como a adopção de medidas de inteligência e de segurança do Estado, necessárias à preservação do Estado Democrático de Direito e da paz pública”, lê-se na denúncia do major das FAA.
David Mendes também esteve no ‘cárcere privado’
Um outro nome não menos conhecido entre os angolanos a marcar presença no cárcere privado, segundo a denúncia de Lussati, foi o conhecido ‘advogado do povo’, David Mendes, que, pela conduta, o major das FAA, o associou à equipa dos ‘algozes’.
“É melhor dizeres só que este dinheiro não é teu. Pertence ao general Kopelipa, general Dino, general Zé Maria, ao general Pedro Sebastião ou então à Isabel. Inventa se puderes, para te escapares dessa. É só isso que deves dizer por escrito”, cita o documento, como sendo o conselho dado pelo ‘advogado do povo’ ao major caído em desgraça.
No dia 27 de Junho de 2021, depois de 44 dias mantido sob cárcere privado, Lussati conta que, na calada da noite, foi vendado os olhos e colocado num veículo de marca Hyundai, modelo i10, e transportado ao Hospital Prisão de São Paulo, onde ficaria incomunicável, numa cela escura, durante sete meses, na condição de recluso com restrições de comunicação.
Lussati narra ainda no documento que, no mês de Julho ou Agosto de 2021, chegou a ser chamado ao gabinete do director do Hospital Prisão de São Paulo, Silva Manuel, para interrogatório. Ali, encontraria o magistrado do MP, Matos de Macedo Dias, e o então director adjunto do SIC, Paulo Benge, que dirigiriam o interrogatório.
Paulo Benge e novamente a culpa aos generais
“Continuas a dizer que o dinheiro é teu?”, “Você cavou o teu próprio buraco”, “Você não tem família general que vai te tirar do buraco”, “Oh, Pedro, você é do Lubango, eu também sou do Lubango! Se você disser agora que o dinheiro é do general Dino, ou do general Kopelipa, ou do seu chefe imediato, seja ele quem for, amanhã mesmo eu te levo de carro para o Lubango!”, disse o então director-geral adjunto do SIC, Paulo Benge, citado no documento pelo major das FAA.
“Este era o cerne do conteúdo da segunda vaga de interrogatórios, realizada já numa instalação penitenciária do Estado, que, para o efeito, fora transformada também em cárcere privado, controlado pelo general Miala, que enviava regularmente o brigadeiro Delfim [Soares] e o coronel Dino Policarpo, a fim de se certificar da incomunicabilidade do aqui denunciante”, lê-se.
Instrução preparatória sem ‘Operação Caranguejo’
Lussati conta também que durante a fase de Instrução Preparatória do Processo n.º 230/22-A — o conhecido ‘caso Caranguejo’, os interrogatórios ocorridos no cárcere privado, de 13 de Maio a 27 de Junho de 2021, e aquele ocorrido no Hospital Prisão de S. Paulo, durante cerca de duas horas, foram os únicos realizados.
“Em nenhum momento se inquiriu sobre folhas de salários da Casa Militar do Presidente da República, sobre as funções ou missões efectivas do denunciante na Casa Militar nos anos em que lá esteve, até 2017, ou sobre qualquer outro aspecto constante da narrativa
da acusação do MP, da narrativa teatral feita pela TPA, em 19 de Maio de 2021, ou daquela constante do Relatório do Acórdão proferido aos 10 de Novembro de 2022. O que se escreveu na douta acusação, nada tem a ver com a realidade vivida na fase de Instrução preparatória”, afirma a denúncia à Assembleia Nacional.
Segundo o documento-denúncia, o “conluio” ou associação existente entre os sequestradores se torna evidente nos documentos que teriam sido forjados. Por exemplo, sustenta a denúncia, “nas suas 75 páginas, a douta acusação omite ostensiva e dolosamente a data da ‘detenção’ do arguido, apenas limita-se a referir o mês, coisa estranha de acontecer numa peça acusatória”.
De igual modo, prossegue o documento, nas suas 126 páginas, o despacho de pronúncia também omite a data de ‘detenção’ do arguido. No entanto, a reportagem do programa ‘Na Lente’, da TPA, exibida no dia 19 de Maio de 2021 como “peça jornalística” da proclamada “Operação Caranguejo”, afirma que o denunciante “foi capturado no dia 13 de Maio de 2021, sem indicar, porém, os roubos que fizeram desde Fevereiro, de onde retiraram as mercadorias que exibiram, nem as ordens de assassinato que emitiram”.
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