A cultura da multa, amplamente aplicada em Angola como mecanismo de coerção financeira, tem gerado impactos negativos na arrecadação do Estado, no funcionamento do sector privado e no acesso da população a bens e serviços essenciais. A penalização excessiva dos inadimplentes, em vez de estimular o pagamento das obrigações, acaba por inviabilizar a regularização de dívidas e empurrar milhares de cidadãos para a exclusão financeira. Em muitos casos, o valor da multa ultrapassa a própria taxa ou emolumento original, tornando a regularização impraticável.
A imposição desproporcional de multas tem respaldo legal, mas a sua eficácia económica e social deve ser questionada à luz de teorias científicas e experiências internacionais. O presente artigo argumenta que Angola deveria substituir esse modelo por mecanismos mais eficientes e inclusivos, garantindo maior arrecadação sem comprometer o desenvolvimento socioeconómico.
O Problema da Multa como Mecanismo de Coerção
Do ponto de vista económico, a aplicação generalizada de multas cria um paradoxo: ao invés de incentivar a regularização, gera um efeito de paralisação financeira, onde os cidadãos deixam de pagar as suas obrigações porque a dívida tornou-se impagável. Esse fenómeno pode ser explicado por diversas teorias da economia comportamental e da gestão pública.
1. A Multa e a Teoria do Custo-Oportunidade
A teoria do custo-oportunidade, conforme formulada por Lionel Robbins (1932), estabelece que as pessoas tomam decisões baseadas na alternativa que lhes proporciona maior benefício ou menor prejuízo. Quando um cidadão ou empresa acumula uma dívida que cresce exponencialmente devido a multas, a decisão racional muitas vezes é abandonar o pagamento em favor de outras prioridades, como alimentação, habitação e saúde.
No caso dos serviços educacionais privados, por exemplo, muitos alunos acabam por abandonar os estudos porque o montante das multas associadas ao atraso no pagamento das mensalidades inviabiliza qualquer tentativa de regularização. Da mesma forma, pequenas e médias empresas enfrentam dificuldades para operar quando são submetidas a penalizações excessivas por atrasos fiscais, levando muitas delas à informalidade.
2. A Lei de Laffer e a Ineficiência da Arrecadação
Arthur Laffer (1979) demonstrou, através da sua famosa Curva da Laffer, que há um ponto de saturação na carga tributária a partir do qual aumentos excessivos de impostos ou penalizações resultam na redução da arrecadação. Aplicando essa lógica ao contexto angolano, percebe-se que a insistência na multa como forma de coerção leva a um efeito contrário ao desejado: em vez de aumentar a receita, contribui para a inadimplência e evasão fiscal.
O resultado é que o Estado perde milhares de milhões em potenciais receitas que poderiam ser arrecadadas se adoptasse um sistema mais flexível, baseado em refinanciamento e incentivos ao pagamento voluntário.
3. A Exclusão Financeira e a Justiça Social
John Rawls (1971), na teoria da justiça social, argumenta que um sistema económico justo deve garantir equidade no acesso a bens e serviços fundamentais. No entanto, a cultura da multa penaliza de maneira desproporcional os mais pobres, que acabam privados de serviços essenciais como educação, energia e saúde devido à impossibilidade de pagar penalizações excessivas.
A cobrança de multas elevadas nos serviços de água e electricidade, por exemplo, resulta na desconexão de milhares de famílias, aprofundando desigualdades sociais e prejudicando o desenvolvimento humano. Esse modelo entra em contradição com os princípios de um Estado democrático e de bem-estar, que deveria buscar alternativas mais sustentáveis para garantir a arrecadação e a inclusão social.
Modelos Internacionais Sustentáveis de Cobrança
Vários países já perceberam que a aplicação de multas abusivas gera mais problemas do que soluções. Em resposta, adoptaram políticas inovadoras para garantir o pagamento de tributos e serviços sem comprometer a população mais vulnerável.
1. Portugal – Programa de Regime Excepcional de Regularização Tributária (RERT): Portugal implementou o RERT, que permite aos contribuintes regularizar as suas dívidas fiscais sem multas excessivas, apenas com juros reduzidos e prazos de pagamento acessíveis. Esse modelo resultou num aumento significativo da arrecadação, pois criou um ambiente mais favorável ao cumprimento das obrigações fiscais.
2. Brasil – REFIS (Programa de Recuperação Fiscal): No Brasil, o REFIS permite que empresas e cidadãos negociem as suas dívidas tributárias com parcelamentos de longo prazo e redução de encargos adicionais. Esse programa tem sido fundamental para evitar a falência de empresas e a perda de empregos devido a multas elevadas.
3. Alemanha – Incentivos para Pagamento Antecipado: Na Alemanha, algumas cidades aboliram a cobrança de multas e adoptaram um modelo de incentivo ao pagamento antecipado. Os cidadãos que pagam as suas taxas dentro do prazo recebem descontos progressivos, criando um estímulo positivo para a regularização financeira.
4. Suécia – Educação Financeira e Acordos Flexíveis: A Suécia investiu em programas de educação financeira para garantir que a população compreenda as suas obrigações e evite inadimplências. Além disso, permite que cidadãos negociem os seus débitos em condições flexíveis, sem penalizações desproporcionais.
Alternativas para uma Política de Cobrança Mais Eficiente em Angola
Diante dessas experiências internacionais, Angola poderia implementar uma política de cobrança mais eficiente, baseada em três pilares fundamentais:
1. Programas de Refinanciamento e Parcelamento: Criar um programa nacional de renegociação de dívidas fiscais e de serviços essenciais, com parcelamentos acessíveis e redução de encargos adicionais.
2. Incentivos para Pagamento Voluntário: Oferecer descontos para quem paga dentro do prazo, evitando a necessidade de multas coercitivas.
3. Educação Financeira e Consciência Fiscal: Implementar campanhas educativas para que cidadãos e empresas compreendam melhor as suas obrigações financeiras e evitem inadimplências.
Portanto, a cultura da multa, apesar de ser juridicamente respaldada, tem-se mostrado ineficaz e prejudicial à arrecadação do Estado e ao acesso da população a bens e serviços essenciais. O alto custo das penalizações gera inadimplência crónica, informalidade e evasão fiscal, comprometendo a sustentabilidade financeira do país.
Com base nas teorias de Robbins, Laffer e Rawls, bem como nas experiências de Portugal, Brasil, Alemanha e Suécia, torna-se evidente que Angola deve abandonar a cobrança coercitiva por multas e adoptar modelos de cobrança mais flexíveis e sustentáveis.
Reformas nesse sentido não apenas aumentariam a arrecadação estatal, como também garantiriam maior inclusão financeira e justiça social, promovendo um ambiente económico mais estável e próspero para todos.
Correio da Kianda